Os deuses da chuva e as mudanças climáticas

Peter L. Bernstein 

A ideia revolucionária que define a fronteira entre os tempos modernos e o passado é o domínio do risco: a noção de que o futuro é mais do que um capricho dos deuses e que homens e mulheres não são passivos diante da natureza (“e das mudanças climáticas” – inserção nossa!).

As estações chuvosas dos últimos dez anos têm se apresentado com volumes de chuvas persistentemente inferiores aos valores médios históricos, refletindo os efeitos das mudanças climáticas. Se os reservatórios das usinas hidroelétricas – sobretudo da região sudeste – não se recuperam durante o período chuvoso, cria-se incerteza em relação à capacidade de atender ao consumo durante o inverno. Para reduzir esta incerteza, acionam-se muitas termoelétricas caras e poluentes. Na seca de 2013 a 2015, gastamos mais de R$60 bilhões com as termoelétricas; em 2020 e 2021, caminhamos para custos semelhantes. Será que não conseguiríamos adotar estratégias menos custosas para os consumidores de energia enfrentarem as mudanças climáticas? Imagina que legal seria se conseguíssemos gerir o risco da hidrologia a um custo menor e sem emitir tantos gases poluentes, causadores do aquecimento global e das próprias secas excepcionais… 

Em seu livro Desafio aos Deuses, Peter L. Bernstein narra na forma de romance a verdadeira aventura intelectual que libertou a humanidade de oráculos e adivinhos, por meio do desenvolvimento das ferramentas para administração do risco. É uma saga que passa por filósofos gregos, matemáticos árabes, mercadores, cientistas e jogadores que, na prática, colocam o passado para cuidar do futuro, superando a impotência humana diante do destino. 

Logo no início do livro, o autor trata a crença em Deus sob a perspectiva de gerir riscos. 

Preparando-se para o Juízo Final

As religiões ocidentais, de forma geral, propagam a ideia e a imagem de um acerto de contas ao fim da vida, em que cada um encontrará o Ser Superior e será julgado por tudo aquilo que fez aqui na Terra. Certeza sobre a existência do Juízo Final ninguém possui, mas podemos tentar estabelecer alguma estratégia para estarmos preparados para o momento.  

Uma pessoa que acredita em Deus, por uma questão de consistência, ora ou reza com frequência e possui uma série de outras boas atitudes. No momento do Juízo Final, pode constatar duas situações, de acordo com a Figura 1:  

  • Situação A: Deus realmente existe, todos os atos realizados ao longo da vida são julgados e a pessoa, por ter se dedicado à sua fé, encontra a paz eterna. 
  • Situação B: Deus não existe e a vida acaba com a morte. A pessoa ficaria – de certa forma – decepcionada, pois perdera várias horas de sua vida em sua missão de fé que, no fim de tudo, não valeu de nada. 

Vejamos agora a situação de quem não acredita em Deus e, portanto, não se dedica a Ele orando ou rezando com frequência e, apenas para reforçar a situação de risco, não apresenta boas atitudes com os outros. Recorrendo novamente à Figura 1, temos duas situações: 

  • Situação C:  Deus não existe e a pessoa fica aliviada pois de certa forma não desperdiçou tempo aqui na Terra com oração, rezas etc.
  • Situação D: Deus existe e o Juízo Final vai ser realizado para uma pessoa que não acreditou em Deus durante toda a sua vida e – no mínimo – nada fez para agradá-Lo. Pior: pode ter sido muitas atitudes decepcionantes. A consequência será a mais desastrosa possível: o sofrimento eterno. 

Assim, diante de todas as situações, aquela de consequência mais gravosa e que deve ser evitada é a Situação D. Deus existir ou não (as duas colunas da Figura 1) não pode ser controlado por nós, mas podemos decidir por acreditar ou não na Sua existência (as duas linhas da Figura 1). Assim, sob a perspectiva de gestão, a única ação que pode ser realizada por uma pessoa para evitar a Situação D é acreditar em Deus e praticar atos de fé.  

Logo, acreditar em Deus – independentemente da fé de cada um – acaba sendo uma boa prática em termos de gestão de risco! 

Figura 1 – Estratégias para o Juízo Final. 

Mas o que essa história toda tem a ver com os deuses da chuva? E como isso nos afeta?  

Pois bem, algumas das decisões tomadas com base nas nossas crenças podem custar muito caro para a sociedade. Vamos falar da crença em um verão chuvoso!  

Preparando-se para um Verão com Mudanças Climáticas

Historicamente, sobretudo na região sudeste, o verão – mais precisamente os 5 meses de novembro a abril – é caracterizado como a estação chuvosa. Por exemplo, para a usina hidroelétrica de Emborcação, localizada no rio Paranaíba, a vazão média das estações chuvosas entre 1931 e 2000 foi de 792m3/s. Nos mesmos anos, entre os meses de maio e outubro, a chamada estação seca, a vazão média foi de 272m3/s.  

As variações dos valores também possuem dimensões diferentes. Conforme pode ser observado na Figura 2, na estação seca – de maio a outubro – as vazões são baixas e a variação absoluta entre os maiores e os menores valores históricos é pequena, enquanto para a estação chuvosa, as variações são muito maiores.  

Em outras palavras, na estação seca, a vazão é sempre baixa; já na estação chuvosa, a vazão pode variar muito mais. Ou ainda, uma estação chuvosa com pouca chuva significa pouca água disponível durante todo o ano, pois na estação seca não são esperados grandes volumes de água no rio. 

Durante a estação seca, as previsões podem indicar uma estação chuvosa com grandes volumes de água afluindo aos reservatórios das hidroelétricas, ou uma estação chuvosa seca. Pode-se acreditar ou não nessas previsões e é aí que a história dos deuses da chuva começa a fazer sentido.  

Figura 2 – Vazões do verão comparadas às vazões do inverno. 

Uma pessoa que acredita que o verão, a estação chuvosa, será seco, por uma questão de consistência, despachará usinas termoelétricas durante a estação seca – ainda que somente as mais baratas – para evitar que os reservatórios das hidroelétricas se esvaziem muito. Com a chegada do verão, duas situações podem ocorrer, tal como ilustrado na Figura 3

  • Situação A: o verão é realmente seco, fazendo com que o custo com o despacho antecipado das termoelétricas durante o inverno tenha valido a pena. Com mais água nos reservatórios, fica mais fácil e menos custoso enfrentar um verão de vazões bem abaixo da média. 
  • Situação B: o verão é chuvoso, fazendo com que o custo com o despacho antecipado das termoelétricas durante o inverno tenha sido um desperdício. A pessoa ficaria – de certa forma – decepcionada, pois teria comando o despacho de usinas que poderiam ter ficado desligadas. 

Vejamos agora a situação de quem acredita que o verão será chuvoso, portanto, não despacha usinas termoelétricas de forma preventiva. Recorrendo novamente à Figura 3, temos duas situações: 

  • Situação C: o verão é realmente chuvoso e a pessoa fica aliviada pois de certa forma não desperdiçou dinheiro com a geração de usinas que não se mostrariam necessárias. 
  • Situação D: o verão é seco e os reservatórios se encontram vazios. Todas as usinas termoelétricas serão chamadas a gerar para atender ao consumo durante a estação chuvosa e o risco de um racionamento vai se elevar. 

Diante de todas as situações, aquela de consequências mais gravosa e que deve ser evitada é a Situação D. O fato do verão ser chuvoso ou seco (as duas colunas da Figura 3) não pode ser controlado por nós, mas podemos decidir por evitar que os reservatórios das usinas hidroelétricas se esvaziem demais, com a produção de energia de outras fontes durante a estação seca (as duas linhas da Figura 3).  

Assim, sob a perspectiva de gestão, a única ação que pode ser realizada por uma pessoa para evitar a Situação D é não deixar que os reservatórios se esvaziem, tendo sempre em mente que o verão será – ou poderá ser – seco. 

Figura 3 – Estratégias para passar pelas estações chuvosas. 

Acreditar que o verão será seco equipara-se a acreditar na existência de Deus: é o melhor a ser feito em termos de gestão de risco.  

Mas o Setor Elétrico já possui vários aplicativos que avaliam as condições de atendimento ao consumo e decidem por deixar ou não os reservatórios se esvaziarem. O problema é que esses aplicativos não consideram os efeitos das mudanças climáticas.

As Secas Bilionárias e as Mudanças Climáticas 

Desde 2012, as vazões afluentes aos reservatórios durante as estações chuvosas têm sido persistentemente inferiores aos valores médios históricos, refletindo os efeitos das mudanças climáticas. Na média, a vazão afluente de 2012 a 2021 correspondeu a 81% da vazão histórica, tal como pode ser observado na Figura 4

Figura 4 – Energia afluente aos reservatórios na estação chuvosa. 

Esse padrão de verões “não tão chuvosos”, apesar de persistente, não tem sido considerado de forma explícita no planejamento da operação do Setor Elétrico. Na Figura 5 apresentam-se os níveis dos reservatórios da região sudeste/centro-oeste nos últimos anos, com destaque para os meses da estação chuvosa, em azul, e da estação seca, em vermelho. Os números indicados no gráfico correspondem ao nível de armazenamento no mês de maio, ou seja, no início da estação seca. 

Conforme pode ser observado na sequência de barras vermelhas de cada ano, nas estações secas os reservatórios continuam sendo esvaziados, na esperança de uma estação chuvosa farta. Porém, desde 2013 as estações chuvosas têm sido modestas, de modo que os reservatórios não se recuperam. Verifica-se que há muito não se inicia uma estação chuvosa com nível de armazenamento superior a 60%, que empiricamente daria uma certa segurança para enfrentar a estação seca. 

Figura 5 – Nível de Armazenamento na Região Sudeste/Centro-Oeste. 

Para haver segurança energética com reservatórios tão baixos, a solução tem sido utilizar as termoelétricas de forma intensa na estação chuvosa. Na prática, todas as usinas são despachadas! Os anos mais secos observados até então, em 2013, 2014 e 2015, foram enfrentados com muita geração termoelétrica. Os custos foram impagáveis no curto prazo, tendo que se recorrer a empréstimos setoriais para financiar a queima dos combustíveis, somando mais de R$ 60 bilhões, tal como ilustrado na Figura 6 e ilustrado no artigo “Secas Bilionárias“. 

Figura 6 – Custos bilionários das secas recentes. 

Em 2020 e 2021, os custos ainda estão sendo contabilizados, mas devem novamente se situar entre R$ 50 bilhões e R$ 60 bilhões. 

Estamos vivendo, de forma recorrente, a Situação D da Figura 3: acredita-se que o verão será chuvoso e ele apresenta-se seco. É o máximo arrependimento! É como não acreditar em Deus e ter que enfrentar o Juízo Final, cara a cara com o Ilustre (Figura 1). 

Reduzindo Custos com as Mudanças Climáticas 

Recorrendo novamente à Figura 3, uma estratégia para reduzir o custo das secas é justamente trabalhar com a primeira linha da matriz, ou seja, passar a supor – de antemão – que a estação chuvosa será seca.

Neste caso, para se precaver, uma das soluções possíveis é antecipar o despacho termoelétrico, colocando as usinas de menor custo para gerar durante o inverno, de modo a preservar a água armazenada nos reservatórios.  

Em 2020, por exemplo, os reservatórios iniciaram o período seco com 55% de armazenamento. Apesar deste nível não ser considerado seguro, a grande maioria das termoelétricas ficou desligada até setembro, tal como pode ser observado na Figura 7.  

Mesmo com a queda no consumo devido à pandemia da COVID-19, os reservatórios se esvaziaram rapidamente e, a partir de outubro, o despacho termoelétrico foi retomado. Com as expectativas de um verão chuvoso, a produção termoelétrica se reduziu novamente entre fevereiro e maio de 2021. 

Como o verão foi seco, com vazões equivalentes a 70% da média histórica, a partir de junho praticamente todas as termoelétricas passaram a ser despachadas, caracterizando o início do enfrentamento de mais uma seca com custos bilionários.

Da forma como foi realizado o uso das termoelétricas, o custo total de geração de maio de 2020 a agosto de 2021 foi de aproximadamente R$ 37 bilhões. 

Figura 7 – Utilização das termoelétricas. 

Se estivéssemos considerando desde o início que a estação chuvosa seria seca, teríamos utilizado mais termoelétricas no período de maio a setembro, de modo preventivo, para evitar o esvaziamento dos reservatórios. 

Esta mudança de estratégia para enfrentar a estação seca teria um custo total de geração de energia de aproximadamente R$ 20 bilhões para o mesmo período, de maio de 2020 a agosto de 2021, e para o mesmo volume de energia. É quase a metade do valor, tal como ilustrado na Figura 8

O custo desta nova estratégia é que se a estação chuvosa tivesse sido úmida, a geração termoelétrica antecipada caracterizaria um desperdício. Conforme pode ser observado na própria Figura 8, há uma elevação de custos nos casos e que o verão se mostra chuvoso, de R$ 3,3 bilhões para R$ 7,0 bilhões. Ou seja, o aumento de custos equivale a R$ 3,7 bilhões.

A pergunta que fica é: vale a pena gastar R$ 3,7 bilhões para evitar um sobrecusto de R$ 17 bilhões com as secas. De forma aproximada, teríamos que adotar a estratégia de nos prepararmos para um verão seco e termos um verão chuvoso por pelo menos cinco anos para que o desperdício do despacho antecipado das termoelétricas superasse a economia de não utilizar as termoelétricas mais caras nos momentos de secas severas.  

Considerando o histórico recente de verões persistentemente secos, entendemos que o seguro do despacho termoelétrico antecipado vale a pena.  

Figura 8 – Custos da produção termoelétrica nas diferentes estratégias. 

Mas não haveria uma forma mais econômica e ambientalmente mais sustentável do que elevar a produção termoelétrica de forma praticamente permanente? Vamos avaliar isso…  

Mais Energia Renovável é a Solução 

A estratégia de gerar mais termoelétricas durante o período seco, preservando o volume armazenado nos reservatórios, de acordo com os resultados apresentados, representa uma oportunidade de reduzir sensivelmente o custo das secas. Para o período 2020-2021, as simulações realizadas indicam uma economia de R$ 17 bilhões. 

Sob o ponto de vista ambiental, no entanto, não nos parece sensata a utilização de mais usinas termoelétricas no enfrentamento das secas severas! Estaríamos enfrentando os efeitos das mudanças climáticas com o aumento da emissão de gases de efeito estufa; e essas emissões – paradoxalmente – são justamente as causas raízes das mudanças climáticas. É uma verdadeira espiral da morte, tal como ilustrado na Figura 9

Seria como cobrar mais caro por um serviço porque o número de clientes se reduziu. Os preços mais altos fariam com que menos clientes ainda se interessassem pelo serviço, agravando a situação até o ponto do negócio tornar-se inviável. 

Figura 9 – Espiral da morte com a emissão de gases de efeito estufa para enfrentar os efeitos das secas. 

Com o objetivo de manter os reservatórios mais cheios, podemos aumentar a produção de energias renováveis no período seco. Além de ser uma medida consistente sob o ponto de vista ambiental, as usinas solares e eólicas são hoje as fontes mais baratas para se produzir energia.  

Enquanto as termoelétricas possuem custos médios da ordem de R$400/MWh, e na seca atual estão sendo utilizadas usinas de até R$2.500/MWh, as usinas solares e eólicas têm ofertado energia com custos entre R$150/MWh e R$200/MWh. Com energia mais barata, o custo de enfrentamento das secas se reduz sensivelmente, bem como o custo de arrependimento de se preparar para uma estação chuvosa seca e ela ser úmida. 

De acordo com a Figura 10, para as usinas eólicas ou solares não haveria um custo, mas sim um investimento ao longo de 15 ou 20 anos, calculado com base no preço da energia ofertada nos últimos leilões. Ademais, como as usinas eólicas apresentam produção que varia muito pouco em função das estações chuvosas serem mais secas ou mais úmidas, o pagamento do investimento de se acreditar em um verão seco ou chuvoso será praticamente o mesmo.  

E ainda, como as usinas solares e eólicas são bem mais baratas que as termoelétricas, os investimentos nas renováveis seriam menores que os custos das termoelétricas em praticamente em todos os cenários, exceto nos verões verdadeiramente chuvosos, que atualmente têm sido raros (Situação C). 

Figura 10 – Custos da produção renovável nas diferentes estratégias de enfrentamento das secas. 

Cria-se assim uma espiral da vida, apresentada na Figura 11, em que a produção de energia pelas renováveis reduz a emissão de gases de efeito estufa, desacelera-se o ritmo das mudanças climáticas e espera-se assim uma redução na frequência de secas severas. 

Figura 11 – Espiral da vida com a redução da emissão de gases de efeito estufa para enfrentar os efeitos das secas. 

Um Exercício de Fé…  

Acreditar em verões chuvosos, desconsiderando as mudanças climáticas, tem se mostrado um verdadeiro desastre para o Setor Elétrico, com o enfrentamento de secas severas realizado pelo despacho de termoelétricas de alto custo e alto impacto ambiental.  

Cria-se uma verdadeira espiral da morte em que as secas severas, decorrentes das mudanças climáticas, determinam a elevação da emissão de gases de efeito estufa, que aceleram ainda mais as mudanças climáticas e assim criam secas mais severas ainda.  

Custos infinitos e sofrimento eterno…  

O primeiro passo para reduzir os custos é mudar a estratégia de operação do sistema, antecipando o despacho das usinas termoelétricas durante as estações secas, de modo a preservar os volumes de água armazenados nos reservatórios das hidroelétricas.  

Continuam os impactos ambientais, mas reduzem-se os custos. 

O segundo passo – definitivo para as questões ambientais e de custos – é a ampliação da oferta de energia renovável, solar e eólica, de modo a evitar o esvaziamento dos reservatórios das hidroelétricas durante a estação seca.  

São mudanças relevantes no planejamento da operação e da expansão da matriz elétrica brasileira, de modo a reconhecer as mudanças climáticas e definir estratégias eficientes de gestão de risco, desafiando os deuses da chuva. 

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