A Expansão da TSEE na Reforma do Setor: Quem Responde pelos Erros no Desconto Social?
A recente proposta de reforma do setor elétrico apresentada pelo Ministério de Minas e Energia (MME) traz mudanças significativas para a Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE), com potencial para impactar milhões de brasileiros em situação de vulnerabilidade econômica e social.
A proposta, que prevê gratuidade para consumo mensal de até 80kWh, embora represente um avanço social importante, levanta questões cruciais sobre a gestão do benefício e a responsabilidade em casos de concessão indevida.
Entender esse mecanismo, seus atores e suas responsabilidades, é fundamental para avaliar os riscos e desafios dessa expansão do programa.
A Tarifa Social e seu Vínculo com o CadÚnico
A Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE) é um benefício criado pelo governo federal para garantir descontos na conta de luz de famílias de baixa renda inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) ou que recebam o Benefício de Prestação Continuada (BPC), além de indígenas e quilombolas.
De acordo com a regra atual, o desconto é progressivo: para a maioria dos beneficiários, a redução na tarifa é de 65% para os primeiros 30 kWh consumidos no mês, 40% para o consumo entre 31 e 100 kWh, e 10% para o consumo entre 101 e 220 kWh; acima desse valor, não há desconto. Para famílias indígenas e quilombolas, o benefício é ainda maior, com desconto de 100% até 50 kWh, 40% entre 51 e 100 kWh, e 10% entre 101 e 220 kWh.
O CadÚnico, por sua vez, constitui-se em um instrumento essencial de identificação e caracterização das famílias de baixa renda no Brasil, sendo destinado prioritariamente àquelas com renda mensal de até meio salário-mínimo por pessoa ou renda familiar total de até três salários-mínimos.
Ele subsidia a formulação, implementação, monitoramento e avaliação de políticas públicas voltadas à redução das desigualdades sociais, como o Programa Bolsa Família, a Tarifa Social de Energia Elétrica e o BPC.
Atualmente, a proposta de reforma do MME busca ampliar significativamente o alcance e o impacto da TSEE, prevendo isenção total da conta para famílias com consumo de até 80 kWh, além de instituir o desconto social, para famílias com renda entre meio e um salário-mínimo por pessoa, com isenção do encargo da CDE.
Segundo as projeções do MME, essas medidas podem beneficiar cerca de 16 milhões de pessoas, correspondendo a 4,5 milhões de famílias.
A Estrutura de Gestão: Quem Faz o Quê?
A operacionalização da TSEE envolve uma rede complexa de atores com responsabilidades específicas:
Quem Cadastra
O cadastramento das famílias no CadÚnico é responsabilidade dos municípios, por meio das secretarias de assistência social e unidades do Centro de Referência de Assistência Social – CRAS. Esses órgãos coletam informações socioeconômicas das famílias, verificam documentação e inserem os dados no sistema. Esta etapa é crucial, pois erros no cadastramento podem comprometer todo o processo subsequente.
As famílias precisam apresentar documentos de identificação pessoal e comprovantes de residência, além de declarar sua renda. A qualidade deste processo depende diretamente da estrutura e capacitação das equipes municipais, que muitas vezes enfrentam limitações significativas.
Quem Valida
Após o cadastramento, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) processa e valida as informações, encaminhando mensalmente às distribuidoras de energia a base de dados atualizada dos beneficiários elegíveis para a TSEE.
Desde a alteração promovida pela Lei nº 14.203/2021, as distribuidoras devem realizar o cadastramento automático dos beneficiários do BPC, sem necessidade de solicitação. O MDS envia mensalmente às distribuidoras a base de dados daqueles que recebem o BPC, para cruzamento com o cadastro de Unidades Consumidoras (UCs), utilizando o CPF como chave de identificação.
As distribuidoras são responsáveis por este cruzamento de dados e pela concessão efetiva do desconto. Vale notar que não é necessário que o beneficiário do BPC seja o titular da conta de luz para receber o desconto da TSEE, o que adiciona complexidade ao processo de validação.
Quem Fiscaliza
A fiscalização do CadÚnico e dos programas derivados é realizada pela Rede Federal de Fiscalização do Bolsa Família e CadÚnico, criada em junho de 2023. Esta rede é coordenada pelo MDS e conta com representantes da Controladoria-Geral da União (CGU), Advocacia-Geral da União (AGU), Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) e Secretaria Geral da Presidência da República.
Os trabalhos de fiscalização se baseiam em quatro processos principais: Averiguação Cadastral de Renda, Averiguação Cadastral Unipessoal, Revisão Cadastral e Inserção automática de informações de renda formal no Cadastro Único. Estes mecanismos visam identificar inconsistências e prevenir fraudes.
No caso específico da TSEE, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) tem papel fundamental na coordenação do uso dos dados do CadÚnico pelas distribuidoras de energia, estabelecendo normas e fiscalizando sua aplicação.
O Dilema da Responsabilidade: Quando o Sistema Falha
Com a proposta de ampliação da TSEE, segundo dados da Volt Robtics, os subsídios que atualmente perfazem R$ 6,2 bilhões, podem chegar a cerca de R$ 13 bilhões anuais. Diante de tal elevação, a questão da responsabilidade por erros e descontos indevidos torna-se ainda mais crítica. Analisemos os cenários problemáticos mais comuns.
Concessão Indevida do Benefício
Quando uma família recebe o desconto sem ter direito a ele, seja por informações incorretas no CadÚnico, falhas no cruzamento de dados ou fraudes, quem deve arcar com o custo do subsídio concedido indevidamente?
A legislação atual não oferece resposta clara para esta questão. As distribuidoras são executoras da política pública, seguindo determinações do governo e utilizando dados fornecidos pelo MDS. No entanto, elas também têm responsabilidade pelo correto cruzamento de dados e aplicação do benefício.
Casos judiciais em outros contextos mostram que empresas podem ser responsabilizadas por cobranças ou descontos indevidos, mesmo quando seguem orientações governamentais. Por exemplo, associações que descontam mensalidades indevidamente de aposentados têm sido condenadas a indenizá-los por danos morais.
Exclusão Indevida do Benefício
O cenário oposto é igualmente problemático: quando uma família elegível não recebe o benefício a que tem direito. Isto pode ocorrer por falhas no cadastramento, problemas no processamento dos dados ou erros das distribuidoras.
Jurisprudência relacionada a cortes indevidos de energia indica que o consumidor pode ter direito à indenização. Tribunais têm entendido que o fornecimento de energia é serviço essencial e sua interrupção ou oneração indevida gera dano moral.
Responsabilidade Compartilhada ou Difusa?
Na prática, a responsabilidade por falhas na TSEE é frequentemente difusa, sendo difícil atribuí-la exclusivamente a um ator específico. Erros no cadastramento municipal podem se propagar por toda a cadeia; falhas na validação pelo MDS podem resultar em listas imprecisas; e problemas no processamento pelas distribuidoras podem levar à concessão errônea ou negação indevida do benefício.
Esta complexidade, em um cenário de expressiva ampliação do programa, aumenta os riscos de responsabilização para todos os envolvidos e pode resultar em contenciosos administrativos e judiciais significativos.
Propostas para um Sistema Mais Robusto
Diante destes desafios, algumas medidas são essenciais para aprimorar a gestão da TSEE e clarificar as responsabilidades.
Definição Legal Explícita
A reforma do setor elétrico deveria incluir dispositivos específicos sobre a responsabilidade em caso de concessão indevida da TSEE. É necessário estabelecer claramente quem deve arcar com os custos de descontos concedidos erroneamente e como serão compensados os consumidores excluídos indevidamente.
Tecnologia e Automação
Investimentos em tecnologia para melhorar os processos de verificação da elegibilidade são fundamentais. O cruzamento automático de dados entre diferentes bases governamentais e algoritmos avançados de detecção de inconsistências podem reduzir significativamente os erros.
Fortalecimento da Fiscalização Preventiva
A Rede Federal de Fiscalização necessita de recursos adequados para atuar preventivamente, identificando inconsistências antes que resultem em concessões indevidas. A abordagem deve priorizar a prevenção de fraudes, não apenas sua detecção posterior.
Revisão do Modelo de Financiamento
Como sugerido na proposta legislativa, seria mais adequado que os custos da TSEE fossem arcados pelo Tesouro Nacional, não pelos demais consumidores, já que se trata de um programa social. Esta mudança não apenas reduziria o impacto nas tarifas, mas também facilitaria a atribuição de responsabilidade, centralizando-a no governo federal.
Capacitação e Padronização
Programas intensivos de capacitação para os agentes municipais do CadÚnico e para as equipes das distribuidoras são essenciais para minimizar erros operacionais. Adicionalmente, a padronização de procedimentos e critérios de verificação em todo o território nacional pode reduzir discrepâncias regionais na concessão do benefício.
Conclusão: Benefício Social com Responsabilidade Clara
A ampliação da TSEE representa um avanço importante na política energética brasileira, com potencial para reduzir significativamente a pobreza energética. No entanto, seu sucesso depende de uma implementação responsável, com definição clara de papéis e responsabilidades.
A questão central não é se devemos ou não ampliar o benefício, mas como fazê-lo de maneira eficiente, segura e justa. A clarificação das responsabilidades não é apenas uma questão jurídica ou administrativa, mas um elemento essencial para a sustentabilidade do programa e para a garantia de que os recursos públicos sejam efetivamente direcionados a quem mais precisa.
Enquanto o setor debate os aspectos econômicos e técnicos da reforma, não podemos negligenciar as questões de governança e responsabilidade. Afinal, a justiça tarifária, tão almejada pela proposta, só será plenamente alcançada quando o sistema for capaz de garantir que o benefício chegue a quem tem direito, e apenas a quem tem direito, com transparência de dados e de clareza sobre quem responde quando isso não acontece.
A Volt reconhece a importância de dados corretos para decisões fundamentadas e projetos eficientes. Quer saber como podemos te ajudar? Entre em contato!
