A CDE em Nova Roupa: Desvendando os Véus da MP 1300/2025 e Seus Impactos
A Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), encargo que pode ser comparado ao ‘coração de mãe’ do setor elétrico brasileiro, onde sempre há espaço para mais um, volta e meia é alvo de críticas e, por vezes, de intervenções que, se bem-intencionadas, nem sempre encontram o caminho mais suave para a implementação.
A mais recente mudança veio com a Medida Provisória nº 1300, de 21 de maio de 2025, que promete reescrever algumas das linhas dessa já complexa fisionomia da CDE.
Um Breve Olhar para o Passado: A CDE e Seus Múltiplos Chapéus
Antes de adentrar nas novidades, vale recordar que a CDE é um verdadeiro canivete suíço do setor elétrico. Criada para fomentar o desenvolvimento energético e a competitividade, ela se tornou, ao longo dos anos, o repositório de uma miríade de encargos e subsídios.
Desde o apoio à universalização do serviço até o custeio de programas de incentivo a fontes renováveis, passando por bandeiras tarifárias e descontos tarifários para diversas categorias de consumidores, a CDE, com sua abrangência, é inegavelmente um pilar na conformação das tarifas de energia elétrica.
E é justamente nesse ponto que a MP 1300/2025 resolveu dar sua contribuição, ou, arrisco dizer, sua ‘pitada de pimenta’.
A MP 1300/2025: Detalhando as Alterações Propostas
A Medida Provisória nº 1300, de 21 de maio de 2025 está fundada em três pilares: promover ‘Justiça Tarifária’; garantir ‘Liberdade ao Consumidor’; e trazer ‘Equilíbrio para o Setor’ [por meio da distribuição justa dos encargos]. A MP, de fato, promove alterações substanciais que merecem atenção e que tocam em pontos sensíveis do setor elétrico brasileiro:
- Revisão e Ampliação da Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE): Um dos pilares da MP é a ampliação do desconto e da isenção tarifária para famílias de baixa renda. A medida estabelece isenção total para consumo de até 80 kWh e desconto para quem consome até 120 kWh, especialmente para famílias inscritas no CadÚnico com renda mensal de até meio salário-mínimo per capita, pessoas com deficiência ou idosos inscritos no BPC, e famílias indígenas ou quilombolas do CadÚnico, incluindo aquelas atendidas em sistemas isolados por módulo de geração offgrid. Com a proposta de ampliação da TSEE e com o desconto social, os subsídios que atualmente alcançam R$ 6,2 bilhões, podem chegar a R$ 13 bilhões anuais, nas contas da Volt Robotics.
- Abertura do Mercado de Energia Elétrica e Supridor de Última Instância (SUI): A MP 1300/2025 avança na abertura do mercado de energia elétrica para os consumidores de baixa tensão, permitindo maior liberdade de escolha e podendo beneficiar cerca de 58,4 milhões de pessoas, em até cinco anos, em todo o Brasil, o que poderá representar uma economia anual de R$ 7,6 bilhões nas contas de luz, de acordo com os cálculos da Volt.
- Em complemento a isso, a Medida Provisória traz a definição doSupridor de Última Instância (SUI), estabelecendo um mecanismo para o atendimento aos consumidores que optarem pelo mercado livre e ficarem sem representação ou em situação de emergência.
- Redistribuição de Custos e Geração Distribuída (GD): A Medida Provisória busca corrigir problemas na divisão de custos, abordando temas como a distribuição mais justa do custo da energia de Angra 1 e Angra 2. Quanto à Geração Distribuída (GD), a MP estabelece que, a partir de janeiro/2026, a parcela da CDE relacionada ao subsídio da GD será rateada por todos os consumidores, inclusive os do Ambiente de Contratação Livre (ACL), na proporção do consumo. É importante notar que, embora houvesse debates, os incentivos à GD foram mantidos, mas com essa nova forma de rateio.
- Autoprodução e Contratos de Energia Incentivada: A MP 1300 também limita a autoprodução à geração nova, o que significa que projetos já em operação comercial não poderão ter novos integrantes enquadrados nessa modalidade. Além disso, a MP estende o prazo para registro de contratos de energia incentivada, temas que geraram um alvoroço no setor.
- Alteração da Denominação da CCEE: Uma alteração pontual, mas relevante para o setor, é a mudança da denominação da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, que passa a se chamar Câmara de Comercialização de Energia (CCEE), mantendo a mesma sigla, de modo a refletir a recém introduzida possibilidade da ampliação na atuação da Câmara, além daquela especificamente voltada ao Setor Elétrico [incluindo o setor de gás, por exemplo].
O Artigo 3º da MP 1300/2025: A Nova Roupa da CDE [Lei 10.438/2002]
O critério de regionalização e seus efeitos
O Artigo 3º da Medida Provisória 1300/2025 assume um papel de destaque ao promover significativas alterações na Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002, que instituiu a CDE. As modificações trazidas pelo Art. 3º são um reflexo direto da intenção de reestruturar a CDE, especialmente quanto à forma de rateio desse encargo.
Antes da publicação da MP 1300/2025, o rateio da CDE já havia passado por algumas alterações e seguia critérios regionalizados e diferenciados por nível de tensão.
Os consumidores das Regiões Norte e Nordeste eram beneficiados, em relação aos consumidores das Regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, que acabavam por arcar com uma fatia maior da CDE, em virtude da inclusão [na CDE] da Conta de Consumo de Combustíveis fósseis (CCC) promovida pela MP 579/2012, posteriormente convertida na Lei 12783/2013.
A lógica de rateio da CCC foi mantida, mesmo após sua inclusão na CDE e estava fundada na atribuição de uma maior parte da CCC aos consumidores das Regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, que concentravam a maior parte das usinas termoelétricas subsidiadas pela CCC. Assim, para cada R$ 1/MWh pago pelos consumidores das Regiões Norte e Nordeste, eram pagos R$ 4,53/MWh por aqueles localizados nas Regiões S/SE/CO.
A lógica por nível de tensão
E, paralelamente, a partir de 2017, com a publicação da Lei 13360/2016, foi instituído o critério de rateio por nível de tensão.
De janeiro/2017 a dezembro/2029, havia a previsão de ajustes graduais no rateio do encargo, de modo que, em janeiro/2030, os consumidores atendidos em tensão igual ou menor que 69kV pagassem 1/3 do que seria pago por aqueles atendidos em tensão inferior a 2,3kV; os restantes 2/3 seriam atribuídos aos consumidores atendidos em tensão igual ou maior que 2,3kV e menores que 69kV.
Esses impactos podem ser observados nos cálculos da Volt, representados nos gráficos a seguir. Ficam evidentes os efeitos da regionalização — com encargos significativamente menores para os consumidores das Regiões N/NE em relação aos das S/SE/CO — e da diferenciação por nível de tensão, especialmente a partir de 2017:
O que muda com a MP 1300/2025
A MP, no entanto, propõe a manutenção desses critérios até dezembro/2029, com a aplicação de um ajuste gradual no período de janeiro/2030 a dezembro/2037, com a equalização dos pagamentos entre os consumidores das Regiões N/NE e S/SE/CO, bem como o fim do critério baseado na tensão de atendimento do consumidor, a partir de janeiro/2038. Visualmente, a figura a seguir ilustra o antes e o depois da MP 1300/2025, para o critério de rateio da CDE, sob os aspectos conceituais:
O Que Esperar: Entre a Esperança e o Ceticismo [Ligeiramente] Fundamentado
Para os agentes setoriais, a MP 1300/2025 pode significar um alívio (ou não) nas projeções tarifárias, a depender de como as novas regras traduzir-se-ão em termos de custo da CDE. Para os consumidores, a promessa é de rateio mais justo e gradualmente equalizado. Para os órgãos governamentais, a tarefa será a de regulamentar e fiscalizar a aplicação da nova norma, evitando desvirtuamentos e garantindo que as intenções se convertam em benefícios reais.
Em linhas gerais, a MP 1300/2025, embora traga a reboque um discurso de modernização e eficiência, ainda paira sobre o terreno pantanoso das definições. As boas intenções são evidentes, mas o diabo, como sempre, reside nos detalhes. E foram realmente muitos os ‘detalhes’, a julgar pela quantidade de emendas que a MP recebeu: quase 600. A primeira prova de fogo virá, portanto, com a eventual conversão da MP 1300/2025, e o que será considerado ou não dentre quase 600 inclusões e ‘puxadinhos’ que a Medida acabará por levar em seu texto final.
A segunda prova ocorrerá quando da regulamentação da MP e, principalmente, com sua aplicação prática, em especial no que se refere à revisão dos subsídios.
O setor elétrico brasileiro, com sua resiliência e sua capacidade de se reinventar, certamente absorverá mais essa mudança. Que ela, no entanto, seja para o bem de todos — e que a CDE, esse coração de mãe do setor elétrico – possa enfim vestir-se com transparência, leveza e equidade, refletindo um futuro energético mais justo para todos os brasileiros.
