MP 1304/2025: Uma resposta aos “jabutis” do setor elétrico
A Medida Provisória nº 1.304, publicada em 11 de julho de 2025, representa uma das significativas intervenções regulatórias do governo federal no setor elétrico brasileiro em anos recentes. Editada como resposta direta à derrubada parcial dos vetos presidenciais à Lei das Eólicas Offshore pelo Congresso Nacional em junho, a MP busca conter o sobrecusto estimado em cerca de R$ 22 bilhões anuais decorrentes dos chamados “jabutis” – emendas desconexas ao tema principal que beneficiam setores específicos.
O timing da medida não é casual. Com o orçamento oficial da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) aprovado pela ANEEL em R$ 49,2 bilhões para 2025, um crescimento de 32,4% em relação ao ano anterior, o governo se viu diante da necessidade de criar mecanismos para conter custos sistematicamente repassados aos consumidores via tarifas.
O que veio neste pacote?
Limitação dos recursos da CDE
O núcleo da MP 1304/2025 estabelece um teto permanente para a CDE, equivalente ao orçamento a ser definido para 2026. Trata-se de uma ruptura com o modelo histórico de expansão “ilimitada” dos subsídios setoriais, criando um limite nominal para os recursos arrecadados junto aos consumidores. Ainda assim, a Conta de 2026 deve ser, provavelmente, bem ‘inflada’, dadas as alterações trazidas pela Medida Provisória 1300/2025. Entre elas, destacam-se as novas regras para a Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE), que definem a gratuidade do consumo até 80kWh e criam o Desconto Social, isentando o pagamento da CDE para o consumo até 120kWh.
Para garantir o funcionamento do sistema quando os custos ultrapassarem este teto, a MP institui o Encargo de Complemento de Recursos (ECR). Este novo mecanismo transfere o ônus financeiro dos excessos aos próprios beneficiários dos subsídios custeados pela CDE. A medida, inspirada em emenda apresentada pelo deputado Arnaldo Jardim (PSD-SP) na MP 1300, aplica o princípio de que “quem se beneficia, paga quando o sistema fica caro”— uma lógica que marca uma inflexão relevante na política de subsídios do setor elétrico.
Esse novo desenho foi detalhado pela Volt Robotics em Cartilhapublicada durante a tramitação da MP 1300, com o objetivo de explicar de forma didática os impactos das emendas propostas.
Neste sistema, consumidores de fonte incentivada e beneficiários da mini e microgeração distribuída (MMGD), por exemplo, poderão arcar com um encargo adicional sempre que o crescimento dos subsídios superar o teto estabelecido. Conforme dados da Volt Robotics, somados, estes custos perfazem R$ 20,5 bilhões para 2025.
A implementação do ECR será gradual: 50% do valor em 2027 e 100% a partir de 2028. Ficam protegidas apenas algumas categorias consideradas essenciais: universalização, TSEE, dispêndios da CCC em sistemas isolados e custos administrativos da CCEE na administração de encargos [incluída a própria CDE].
De forma complementar, as usinas e os consumidores de fontes incentivadas, por meio dos descontos, e as distribuidoras, por meio da CDE-GD, verão seus subsídios serem reduzidos em função do atingimento do teto da CDE. Ademais, estariam sujeitos ao pagamento do ECR outros grupos que em razão dos incentivos recebidos compõe a base despesas da CDE, tais como: carvão mineral, irrigação, aquicultura e subvenção cooperativa.
Substituição de térmicas por PCHs
A MP altera substancialmente a Lei 14.182/2021 (privatização da Eletrobras), substituindo a contratação obrigatória de 8 GW de térmicas inflexíveis por até 4,9 GW de usinas hidroelétricas até 5MW, como Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e Centrais de Hidrelétrica (CGHs). Deste montante, 3 GW deverão ser contratados via leilão de reserva de capacidade até o primeiro trimestre de 2026, com início de suprimento escalonado entre 2032 e 2034 (1GW por ano).
As PCHs terão preço máximo fixado com base no teto para empreendimentos sem outorga do leilão A-6 de 2019 (R$ 285/MWh à época), atualizado até a data de publicação do edital, e contarão com um período de suprimento de 25 anos. O volume remanescente, correspondente a 1,9 GW – bem como toda a energia adicional prevista na Lei 14.182/2021 – poderá ser contratado em momento posterior, desde que sejam comprovadas necessidades no âmbito do planejamento setorial, de acordo com critérios técnico-econômicos definidos pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).
A MP também garante a prorrogação dos contratos do Proinfa, beneficiando projetos de PCHs, usinas eólicas e térmicas a biomassa.
Mudanças no setor de gás natural
A MP fortalece a PPSA (Pré-Sal Petróleo S.A.), autorizando-a a celebrar contratos em nome da União para escoamento, transporte e processamento de gás natural. O CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) passa a determinar condições e valores de acesso aos sistemas integrados para comercialização do gás natural da União, visando ofertar gás mais competitivo para a reindustrialização nacional.
Complexidades de implementação e desafios regulatórios:
Definição do teto: um problema em aberto
A MP 1304/2025 estabelece o teto da CDE com base no “valor nominal total das despesas definido no orçamento de 2026”, o que cria um intervalo de indefinição regulatória até a aprovação desse orçamento. Nesse período, há a possibilidade de inclusão de novas propostas de subsídios, elevando o montante de recursos antes mesmo da fixação definitiva do limite — o chamado risco de “corrida do ouro”.
Do ponto de vista jurídico e de planejamento setorial, a indefinição do valor exato do teto até 2026 pode dificultar a tomada de decisões de investimento e a gestão de riscos pelos agentes. Essas incertezas impactam tanto o custo final das tarifas quanto a previsibilidade das regras aplicáveis a projetos futuros.
Complexidade jurídica dos leilões de PCHs
A Medida Provisória 1.304/2025 revogou o artigo 21 da Lei da Eletrobras, que impunha a contratação de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) nos leilões A-5 e A-6, com preço-teto vinculado ao certame de 2019. Isso gerou incertezas jurídicas quanto à continuidade e aos parâmetros regulatórios do Leilão de Energia Nova A-5, inicialmente previsto para 22 de agosto.
Diante dessa mudança, a ANEEL retirou o edital do leilão da pauta da reunião de 16 de julho para reavaliar os impactos da revogação. Um dos debates centrais foi a falta de base legal para manter os preços anteriormente estabelecidos, já que, com a revogação, a obrigatoriedade desapareceu e tornou o leilão um ato discricionário do governo. O diretor Fernando Mosna destacou que, nesse novo cenário, a definição dos preços deveria se basear no art. 20 do Decreto nº 5.163/2004, ou seja, no custo marginal de referência da EPE.
Logo após, o Ministério de Minas e Energia publicou a Portaria Normativa MME nº 113/2025, retirando o dispositivo que remetia ao leilão de 2019 e confirmando a possibilidade de definição autônoma de novos valores pelo governo. Com isso, a Empresa de Pesquisa Energética recalculou o preço-teto para a fonte hídrica em R$411/MWh, utilizando o Custo Marginal de Referência como base. Somente após esse processo, o tema voltou à pauta da Aneel, cuja diretoria aprovou, por maioria, o novo edital do leilão. O leilão terá preço-teto de R$ 411/MWh para empreendimentos sem outorga ou contrato, R$ 316,50/MWh para PCHs e CGHs com outorga, e R$ 221,55/MWhpara hidrelétricas com outorga e contrato.
A decisão da diretoria, porém, não foi unânime: Fernando Mosna votou contra, alegando falta de motivação formal por parte do MME para justificar a exclusividade do leilão mesmo na ausência do comando legal anterior.
Apesar da retomada dos trâmites, o episódio evidencia um problema estrutural do setor: a insegurança provocada por alterações legislativas inesperadas, que afetam as bases contratuais e regulatórias de projetos em andamento sem mecanismos claros de transição. Para empreendedores e investidores, esse contexto eleva os riscos regulatórios e compromete a previsibilidade, fator essencial ao desenvolvimento de novos empreendimentos. Isso demonstra como a alteração dos fundamentos legais e contratuais, sem transições adequadas ou justificativas formais, amplia a insegurança jurídica para projetos em fase de desenvolvimento.
Operacionalização do Encargo de Complemento de Recursos
A implementação prática do Encargo de Complemento de Recursos (ECR) representa um dos aspectos complexos da MP 1304/2025, exigindo a criação de metodologias para mensurar “a proporção do benefício auferido” pelos diferentes agentes. A alteração gera incertezas sobre como calcular adequadamente os benefícios de categorias distintas – desde a geração distribuída até beneficiários da fonte incentivada que recebem descontos de 50% a 100% nas tarifas de uso do sistema. A complexidade aumenta quando consideramos que o ECR deverá ser aplicado de forma gradual: 50% em 2027 e 100% a partir de 2028, sobre uma base de beneficiários que movimenta mais de R$ 17 bilhões anuais apenas em subsídios para geração distribuída e fonte incentivada.
Outro desafio operacional consiste em evitar que esses custos sejam repassados indiretamente aos consumidores finais, o que poderia comprometer o objetivo central da MP de proteger as tarifas. Em agosto/2024 os encargos já representam 13,5% da tarifa residencial e há o risco de que empresas sujeitas ao ECR transfiram esses custos por meio de ajustes contratuais ou aumentos em outros serviços.
A operacionalização efetiva exigirá não apenas metodologias robustas de cálculo, mas também mecanismos regulatórios de monitoramento para evitar que o ECR se transforme em mais um custo sistêmico repassado aos consumidores, frustrando assim o propósito original da medida.
Conclusão: entre necessidade e incerteza
A MP 1304/2025 marca uma tentativa clara de introduzir limites aos custos setoriais e de responsabilizar diretamente os beneficiários dos subsídios pelos excessos tarifários. Ao estabelecer um teto para a CDE e criar o Encargo de Complemento de Recursos, o texto busca conter a escalada de encargos repassados aos consumidores.
Ainda assim, permanecem desafios importantes: a escolha do referencial orçamentário, as eventuais distorções jurídicas nos leilões de PCHs e os métodos de cálculo do novo encargo podem testar a robustez da proposta. A eficácia deste ajuste dependerá, em última instância, do diálogo transparente entre Congresso, ANEEL e demais atores, bem como da clareza nas regras de transição e de fiscalização.
Nos próximos meses, será essencial acompanhar como esses mecanismos se materializam na prática e se contribuem efetivamente para o equilíbrio financeiro e regulatório do setor elétrico. Nesse processo, conte com a expertise da Volt Robotics para navegar pelas transformações setoriais. Fale conosco e fique um passo à frente!
